segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A Volta do Negro morto



Dona Sabina era benzedeira. “Tia-velha” benzedeira, como se diz aqui na fronteira. De corpo franzino, bem pretinha e pequenininha, mas com alma imensa! Sua idade? ninguém sabia. Na “tia” Sabina, o tempo havia parado. Dizem que falava com os passarinhos. Fumava palheiro e bebia suas cachacinhas. Benzia tudo: espinhela caída, dor de amor, asma, mau-olhado e temporal (e isso só para ficarmos “no varejo!”).

Suas rezas levantavam cavalo velho, desviavam temporais de Santa Rosa, curavam homem já com “aquilo” roto, e afastavam nuvens de gafanhoto – que, na época de sua juventude, eram frequentes.

Morava numa casinha bem humilde, mas muito limpinha, cheia de flores, na avenida beira rio.
Tinha um carinho todo especial por mim. “Meu filho - dizia - ‘ocê’ vai dar muito trabalho!!! Ah, se vai!!” Depois, mandava eu me virar de frente para o rio Jaguarão e, pegando qualquer “jujo” do seu vasto jardim de ervas medicinais, fazia uma benzedura pra me proteger de todo mal: “São Jorge/monte maior/ guardai as costas e tudo a redor/de bruxo ou feiticeiro/ em nome de Deus e da Virgem Maria/ Amém, Jesus!”

Dona Sabina me contou como surgiu o nome do local do rio Jaguarão - a Volta do Negro Morto.

Numa das curvas que o rio dá, antes de se abraçar com a Laguna Mirim, existe um local muito fundo - mais de dez metros. É a Volta, ou curva (ou geograficamente: o meandro) do Negro Morto.

Ela contava a estória medindo as palavras, entre uma baforada e outra do crioulo. Os bracinhos escuros e frágeis da velha gesticulavam, dando uma ênfase maior ao “causo”.

Falava que, naqueles tempos, quando ainda existia o cativeiro no Brasil, muitos negros tentavam escapar-se para o Uruguai - país de onde a chaga da escravidão já havia sido extirpada.

Um escravo, do qual ela não mais lembrava o nome, tentou buscar a liberdade exatamente naquela curva do rio.

Seu senhor, juntando-se a uns agregados, partiu em busca do fujão.

Vendo-se perdido, o cativo tomou a decisão: liberdade ou morte! E atirou-se às águas do Jaguarão. Era um homem forte, nadava vigorosamente. As cargas, sinistras, sibilavam à sua volta...

Infelizmente, a liberdade cobrou seu preço: estava do outro lado, porém com várias balas no corpo.

Debaixo de um grande salso, na areia quente e com o zumbido das mutucas, agonizou por horas. Seu organismo perfurado ficou ali, virando repasto para feras e abutres.

Hoje, poucas pessoas se aventuram a pescar naquele local, pois dizem que o tal escravo, o “nego morto” - que ficou insepulto - aparece em noites de lua cheia ,pedindo para que lhe deem uma sepultura cristã.
Hélio Ramirez

Conto que faz parte do Livro bilíngue "Lendas do Rio Jaguarão" ( tradução para o espanhol do Professor Juan)  do escritor, músico, biólogo, Hélio Ramirez.   

Google Maps. Mapa do Rio Jaguarão. A seta indica a Volta do Negro Morto 

Um comentário:

Analva Passos disse...

Boa história!! Liberdade ainda que tardia...

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