quarta-feira, 28 de março de 2012

Sereia em pelo de esquilo.



Entre noite e madrugada, sorriu-lhe uma sereia. Mais tarde L. B. descobriu que Ela era um esquilo invertido, uma serelepe, cujos pelos úmidos, naquela noite sem lua, lembraram uma sereia. Ao sol, a cabeleira dela faria sombra fresca e perfumada. Mas isso ele desfrutou apenas de passagem.
Os irmãos Kid e Cid – suprafôlego do The Black Mouse ­– catavam os grãos de areia que há nas notas de Samba pa ti. E o tempo escorria santanamente. E a noite era só o brilho das estrelas esparramadas na lagoa. Ela sorriu; ele não estava bem, o sorriso pegou-lhe de raspão, roçou a pele e se foi; ademais, ela estava acompanhada de uma marta – este animal que está fora da árvore do mundo, esta fuinha.
A imagem de sereia era mais forte, e a marta patrocinava um buraco-negro por onde iam e vinham delinquir brasileiros e castelhanos. A benevolente Merin quase engasgava com tanta fumaça de cigarro - ele fumava, Ela fumava, eles fumavam, elas fumavam, isto e aquilo fumavam. Era bacana fumar, então. Tudo era uma fumaceira.
Algum relógio interno o empurrou para perto de uma janela. A brisa do lago e o ar fresco da noite entraram pelo nariz. Ele forçou a inalação para ver se acostumava, mas algo lhe esverdeou o olhar. Sentiu que baqueava, tateou o rebordo da janela – ocorreu-lhe saltar para fora, pra não fazer feio. Ele sabia que era dado a longos torpores e a fruir sonhos paradisíacos, mas não lhe agradava que outros o descobrissem, era discreto em suas pequenas neuroses, pois era preciso esmaecer o porte estapafúrdio. Foi quando viu pela segunda vez o sorriso dela, agora próximo. Ela estava ali, sozinha. Sorria e trazia um cigarro apagado entre os dedos. “Um esquilo com sua noz”. Tinha um crispar de mãos quase vegetal. Ele sacou fósforos do bolso da jeans. “Não, não, eu quero o fogo verdadeiro. Vamos sair, desse lugar.” Ela disse.
L. B. concluiu que ela não percebera que ele estava de capa caída. Tratou de se recompor. Porém, em seguida atualizou-se: aqui no Uruguai, não posso me descuidar. “Se ela estiver sendo assediada por um do tipo “no te oigo!”, não tem lero, tô ferrado.” Num átimo seu Quixote falou mais alto, envergonhou-se daquela fraqueza, e disse: Ok! Vamos!
Saíram tranqüilos pela porta, abandonaram a faixa de luz da entrada e em seguida estavam caminhando na estrada arenosa. Só/ébrio ele, mais uma vez, ponderou suas fraquezas; para onde levá-la, só o que tinha era um lugar na barraca cazumbi, onde algum bilontra da tripulação galiléia certamente já se recolhera; sabia do perigo que era a banda da lagoa. Desta vez não chegou a valer-se do espírito manchego que a tudo redimia; enquanto caminhavam, Ela finalmente acendeu o cigarro com o fogo essencial e ele foi arrebatado por outra realidade.
Tudo escureceu ao redor, tornou-se ainda mais escuro; quando a escuridão era completa, alguns relâmpagos ocres derramaram uma leve claridade. Com mil milhões de diabos, ali estava sua Yggdrasil, fosforescente até a medula, bem enraizada, bem copada! Furtiva, agora com sua cabeleira que fazia sombra, Ela, com gestos e feições diminutas, revoluteava em torno do Dragão; dizia-lhe coisas, porém sempre correndo e roendo uma pinha, de modo que o pobre Dragão, excitado, quase enroscava-se na própria cauda para tentar escutá-la. Quando a fera mal podia conter o fogo, que se derramava pela boca, Ela, em disparada, precipitava-se em direção à Águia. Ele a sentia no estômago e Ela já estava no peito, logo circundava o pescoço e como se fosse um gás, já estava diante da Águia a fustigar-lhe os ouvidos. Depois, movia-se, novamente para baixo, percorrendo seu caule, seus galhos, suas folhas e chegava às raízes, instigando e alevantando o Dragão. Era uma intrigalha projetada, minuciosamente arquitetada por Ela e que o confundia todo. Nada mais fez sentido, L. B. cofiou a penugem sob o queixo com a ponta dos dedos magros, depois estreitou o cordão colar da camiseta interior – apalpava-se para tentar reconhecer o gaúcho que era. Soprou nele um lirismo desesperado: Não sou nenhum sacristão, mas esta Teiniaguá me enfeitiçou. As ideias colidindo com os apetites. Yggdrasil, Águia, Dragão, Ratatoskr. Faltava-lhe o ar, ele sentou em uma pedra e dali viu um mundo acima de sua cabeça e outro abaixo da pedra, olhou ao redor e desfaleceu. Acordou com um borrifo de água mineral no rosto. Ela seguiu falando de maneira arquitetada, usando as palavras como se projetasse uma habitação impossível de ser concebida, ou pelo menos ele não conseguia se representar, mas estava aliviado. De alguma forma, Ela fizera uma mediação para a travessia – ah, agora sim L.B. entendia, Ela falara o tempo todo de uma ponte, que tanto une quanto separa.
Enfim, à frente de uma pequena casa, com uma única porta e uma única janela, à beira do principal acesso ao balneário, Ela disse: “Quero me entregar a ti, por que tu me pareces justo com quase toda a gente, e se eu não o fizer assim, tenho medo de me arrepender pelo resto da vida.” Estendeu-lhe os braços, disse uns sins e uns nãos. Quando ele a conheceu Ela estremeceu com medo de que, mais uma vez, ele não retornasse de sua pequena morte.
Já era a alba, ele vadiou um pouco pela orla do lago e depois encafuou-se na barraca galiléia.


Sérgio B. Christino

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